Cartas revelam as esperanças e reivindicações dos brasileiros no início da redemocratização do País
Pegue uma folha em branco. Encare as linhas vazias. Destampe a caneta. Agora, escreva o que quiser. Parece simples. Mas encontrar a primeira frase, em um momento em que o país saía de uma das fases mais duras de sua história, era um exercício de coragem, esperança e desejo de transformação.
Era o início da redemocratização. O Brasil dava os primeiros passos rumo a um novo tempo, e milhares de brasileiros foram convidados a participar da construção de uma nova Constituição. Em 1986, a sociedade civil atendeu ao chamado: enviou mais de 72 mil cartas à Assembleia Nacional Constituinte com propostas, pedidos e desabafos. Um retrato sincero dos sonhos de um povo que voltava a ter voz.
Entre os temas mais citados estavam a geração de empregos, a distribuição de renda, educação pública de qualidade, segurança, combate à fome, direitos das mulheres, penas mais severas e até o voto aos 16 anos. Houve ainda propostas controversas, como a de esterilização temporária de homens e mulheres como forma de conter o crescimento populacional. Nem tudo fazia sentido, mas tudo refletia o desejo de participar.
Hoje, quase quatro décadas depois, algumas dessas vozes voltam a ser ouvidas graças ao projeto A Constituição dos Sonhos, do Senado Federal. A iniciativa digitalizou e disponibilizou as cartas em uma plataforma de livre acesso, permitindo a consulta por nome, cidade e tema. Ao explorar os registros com os filtros “Alagoas” e “Maceió”, foi possível reencontrar histórias marcantes de alagoanos que contribuíram com suas visões de futuro.
“Sinto saudades da jovem que queria mudar o mundo”
A médica alagoana Maria de Fátima Alécio Mota, hoje com 57 anos, reencontrou a carta que escreveu quando ainda era estudante do ensino médio. À época, pediu a valorização do ensino técnico como alternativa viável para a inclusão no mercado de trabalho. “Universidade para todos é uma utopia”, escreveu. Para ela, era preciso profissionalizar os jovens para que pudessem ter uma vida digna mesmo sem acesso ao ensino superior.
Ao reler suas palavras quase 40 anos depois, a emoção tomou conta. “Acabei chorando porque foi um momento ímpar. Sinto saudades dessa jovem cheia de sonhos, com vontade de fazer algo. Continuo com os mesmos ideais”, afirmou. O desejo não ficou apenas no papel: hoje, o Brasil conta com mais de 2,4 milhões de pessoas matriculadas no Ensino Profissional e Tecnológico, segundo dados do MEC de 2023. Um avanço, embora ainda insuficiente, na avaliação da médica.
“Minhas ideias continuam vivas”
A professora da Ufal Leiko Asakura, de 59 anos, também teve sua carta resgatada pelo projeto. Sem se lembrar que havia participado, só reconheceu seu texto após ouvir um podcast sobre o tema. Em 1986, ainda estudante de Nutrição, escreveu sobre a grave situação da desnutrição infantil no Brasil, que à época afetava cerca de 86 milhões de crianças. Uma de suas sugestões — a criação de políticas de merenda escolar — tornou-se realidade com a Lei da Alimentação Escolar.
“Hoje eu faria novos pedidos”, diz Leiko. Entre eles, uma reforma tributária que isente alimentos in natura de impostos e maior responsabilização de empresas envolvidas em desastres ambientais. “Ver que minhas propostas seguem atuais só reforça que a luta por justiça social e ambiental continua necessária”, destacou.
Cartas que se tornaram testemunhos de fé e cidadania
Entre os nomes encontrados também está o de Dom Edvaldo Gonçalves Amaral, arcebispo conhecido em Maceió. Em sua carta, pediu a preservação da vida, o direito universal à educação, liberdade de expressão e trabalho digno. Aos 98 anos, Dom Edvaldo não pôde participar da reportagem, mas sua voz permanece eternizada na história do país.
“Rever é constatar que mudamos”
O jornalista Delane Barros, hoje com 53 anos, escreveu sua carta aos 14, incentivando os colegas de classe a fazer o mesmo. Ao reencontrar suas palavras, confessa que algumas ideias soam ingênuas, mas que o desejo de contribuir com o Brasil permanece o mesmo. “É uma experiência que emociona. A gente percebe o quanto cresceu e como os sonhos continuam vivos”, afirma.
Reflexo da sociedade que reconstruiu a democracia
Para o cientista político Ranulfo Paranhos, as cartas revelam muito mais que desejos pessoais — elas retratam a reconstrução da cidadania no Brasil. “Foi a mobilização popular que resultou na Constituição Cidadã. Um processo coletivo, por vezes contraditório, mas profundamente democrático”, explica.
Entretanto, ele também chama atenção para os desafios atuais: a polarização política, a crise institucional e os ataques à democracia. “A desinformação ganhou força e o debate público perdeu qualidade. Superar essa crise exigirá esforço coletivo: fortalecer instituições, restabelecer canais de diálogo e reconstruir a confiança social”, conclui.
Hoje, ao reler as palavras que foram escritas com tanta esperança em um Brasil recém-liberto da censura, o sentimento que permanece é um só: o desejo contínuo de participar, de melhorar e de sonhar. Mesmo que os tempos mudem, os sonhos de um país mais justo e humano permanecem vivos.